As minhas últimas duas atuações
exigiram bastante de mim. Curioso que foi só depois de falar o quanto confio no
meu clown que eu tive que exercer essa confiança ativamente. Não foi só me
jogar e ver o que vai acontecer, foi querer
me jogar e confiar, e ver depois o que iria acontecer. Foi o frio na barriga, o
medo de dar errado, o medo de não conseguir fazer o meu trabalho. Durante toda
a preparação eu fiquei pensando no meu diário, lembrei que eu admiti pra mim
mesmo e aqui no blog que eu confio no Bartolomeu.
E como a Teka Aquarela falou em um
diário dela, a parte boa de escrever um diário depois de tanto tempo é que eu
consegui destacar com mais facilidade o que foi importante, o que marcou, e
qual é o meu papel como clown. Sim, estas duas últimas atuações foram marcantes
pra mim, eu acho que foram bem definidoras do meu clown, e talvez por isso eu precisei
parar um pouco, me afastar, avaliar, e escrever o diário.
A primeira atuação que quero comentar
me marcou porque a confiança no clown vale a pena. Foi uma atuação bastante
divertida, com Testa das Frituras, que, no final, me fez pensar no papel social
do clown dentro do hospital: além de fazer brincadeiras, ressignificar coisas e
tentar aliviar o ambiente hostil que é o hospital, eu acho que um dos
principais papéis que podemos fazer é o de ouvir.
No hospital, a vida pessoal é deixada
de lado, os dramas, dilemas, alegrias e relações parecem ter menos importância
que a doença que traz a pessoa, a doença que mobiliza a família. E parece que é
só isso que existe: a doença, a dor. Quem somos é deixado de lado, seja a
paciente, seja a acompanhante, seja a funcionária do hospital. E claro, dar
conta da doença já é um trabalho muito grande, existem muitos protocolos a ser
seguidos, mas a gente é gente e
precisa de atenção, de carinho. É bom ter com quem conversar. E o bom da clown
é que a clown não julga, a clown não faz cara feia e nem recrimina. A clown
ouve e está junto. E eu gosto da liberdade que as pessoas sentem de conversar
com a clown. Inclusive sobre sexo. Conversar safadeza é muito bom, é divertido,
afinal de contas, todo mundo sente tesão. Não importa quem, seja rica ou pobre,
da Paraíba ou da Rússia, todo mundo tem desejo. Super natural. E sabe quem tem
desejo também? Idosas. Não é porque envelhece que deixa de ser humana, que deixa
de gostar de conversar sobre isso, que deixa de gostar de sexo. Eu gosto quando
as pessoas sentem liberdade de conversar isso com a gente, eu acho que deveríamos
tratar a sexualidade da idosa com mais naturalidade. Isso aconteceu poucas
vezes, mas fico feliz que tenha acontecido.
Apesar da maior parte da noite ter
sido bastante divertida, o que marcou mais esta atuação foi a dor. Um dos
pacientes do andar faleceu uns 15 minutos depois de termos saído do seu quarto.
Eu e Testa estávamos nos preparando para finalizar quando vimos a grande
comoção no corredor, gente correndo prum lado e pro outro. A filha do paciente,
uma mulher que eu adorei conhecer, estava em prantos. Aquela mulher, forte, que
quando chegamos no quarto, a vimos dando suporte a outras pessoas de um leito
vizinho. Ela conversou muito conosco, nos falou sobre sua vida, seus dilemas e
problemas, e que mesmo assim ela não baixava a cabeça, enfrentava o que
aparecesse, estava bem-humorada, e me fez muito bem, me divertiu muito também. Como
imaginar que em tão pouco tempo as coisas pudessem mudar tanto? Aquela mulher,
que estava alegre em um momento, estava desconsolada no seguinte... Tinha muita
gente perto dela, tentando ajudar: enfermeiras, acompanhantes de outros
quartos. Eu quis chegar perto, quis consolar, mas nas minhas limitações, e não
havia nada que eu pudesse fazer naquele momento. Tem horas que não existe outra
coisa a fazer a não ser sentir a dor. Ficamos alguns momentos de longe,
observando, tentando mostrar empatia e solidariedade, mas não senti liberdade
como clown de me aproximar. Saímos, fechamos a atuação e fomos embora. Foi a
primeira vez que eu vi a morte de perto na UPI e como estudante de medicina.
A atuação da semana seguinte me marcou
por outros motivos. Eu ainda estava abalado dos eventos da semana anterior, mas
eu confio no Bartolomeu e fui me preparar novamente. E nesta vez, éramos eu,
Testa das Frituras e Pietra Fofolete. Eu não estava bem para atuar, não
consegui juntar energia o suficiente pra subir o nariz, mas estávamos também
com Jamaisvista de Listras e Catarina Polenta, todas juntas pra subir o nariz,
e eu não quis abandonar minhas companheiras. E foi muita coisa acontecendo ao
mesmo tempo, me lembrei de vários pontos da formação, entrei em conflito, a
música tocando, eu sentia a energia das minhas companheiras e me sentia vazio,
mas decidi subir o nariz. Puxei toda a minha confiança no Bartolomeu, e esse
foi meu estopim pra subir a máscara. Durante toda a atuação eu me senti muito
como no Abraço Grátis, muito self-concious, ciente de mim mesmo, saía do estado
de clown com frequência, eu só queria terminar e sair dali. Mas eu não podia
nem queria abandonar meus companheiros. E um fato chave do final foi ouvir do
Thiago que aquela tinha sido uma das melhores atuações dele, e falou os motivos
pelos quais ele tinha achado isso. Eu fiquei muito feliz por ele, e por poder
compartilhar isso, mas isso me provocou muitas reflexões também. Será que eu
estou tão dissociado assim do meu clown? Será que somos tão diferentes assim,
pra eu ter vivido e sentido uma coisa na minha cabeça e ter transmitido outra
totalmente diferente durante a atuação? O que será que isso significa e que
efeitos isso tem pra mim na UPI, na minha vida acadêmica e pessoal? Por um lado,
eu acho bastante natural que em uma rotina de atuações semanais, eventualmente haverão
atuações que não vamos nos sentir bem, que serão ruins pra gente, que estaremos
com pouca energia pra encher a jarra das companheiras e que o importante é não
desistir, que temos que perseverar mesmo e não abandonar o projeto. Por outro
lado, eu sinto que fazer isso foi um profundo desrespeito com o que o
Bartolomeu Barbudo significa para mim. Subir o nariz com a energia baixa foi
uma decisão ponderada, mas foi bastante negativa. Guardei mais uma lição pra
mim na vida de clown, não sei ainda como avaliar o resultado disso tudo.
PS: neste diário, uso o gênero feminino como neutro para chamar atenção ao sexismo da língua portuguesa.
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