terça-feira, 22 de julho de 2014

Bartolomeu Barbudo - Atuações HUT 4/07 e 11/07/2014

As minhas últimas duas atuações exigiram bastante de mim. Curioso que foi só depois de falar o quanto confio no meu clown que eu tive que exercer essa confiança ativamente. Não foi só me jogar e ver o que vai acontecer, foi querer me jogar e confiar, e ver depois o que iria acontecer. Foi o frio na barriga, o medo de dar errado, o medo de não conseguir fazer o meu trabalho. Durante toda a preparação eu fiquei pensando no meu diário, lembrei que eu admiti pra mim mesmo e aqui no blog que eu confio no Bartolomeu.

E como a Teka Aquarela falou em um diário dela, a parte boa de escrever um diário depois de tanto tempo é que eu consegui destacar com mais facilidade o que foi importante, o que marcou, e qual é o meu papel como clown. Sim, estas duas últimas atuações foram marcantes pra mim, eu acho que foram bem definidoras do meu clown, e talvez por isso eu precisei parar um pouco, me afastar, avaliar, e escrever o diário.

A primeira atuação que quero comentar me marcou porque a confiança no clown vale a pena. Foi uma atuação bastante divertida, com Testa das Frituras, que, no final, me fez pensar no papel social do clown dentro do hospital: além de fazer brincadeiras, ressignificar coisas e tentar aliviar o ambiente hostil que é o hospital, eu acho que um dos principais papéis que podemos fazer é o de ouvir.

No hospital, a vida pessoal é deixada de lado, os dramas, dilemas, alegrias e relações parecem ter menos importância que a doença que traz a pessoa, a doença que mobiliza a família. E parece que é só isso que existe: a doença, a dor. Quem somos é deixado de lado, seja a paciente, seja a acompanhante, seja a funcionária do hospital. E claro, dar conta da doença já é um trabalho muito grande, existem muitos protocolos a ser seguidos, mas a gente é gente e precisa de atenção, de carinho. É bom ter com quem conversar. E o bom da clown é que a clown não julga, a clown não faz cara feia e nem recrimina. A clown ouve e está junto. E eu gosto da liberdade que as pessoas sentem de conversar com a clown. Inclusive sobre sexo. Conversar safadeza é muito bom, é divertido, afinal de contas, todo mundo sente tesão. Não importa quem, seja rica ou pobre, da Paraíba ou da Rússia, todo mundo tem desejo. Super natural. E sabe quem tem desejo também? Idosas. Não é porque envelhece que deixa de ser humana, que deixa de gostar de conversar sobre isso, que deixa de gostar de sexo. Eu gosto quando as pessoas sentem liberdade de conversar isso com a gente, eu acho que deveríamos tratar a sexualidade da idosa com mais naturalidade. Isso aconteceu poucas vezes, mas fico feliz que tenha acontecido.

Apesar da maior parte da noite ter sido bastante divertida, o que marcou mais esta atuação foi a dor. Um dos pacientes do andar faleceu uns 15 minutos depois de termos saído do seu quarto. Eu e Testa estávamos nos preparando para finalizar quando vimos a grande comoção no corredor, gente correndo prum lado e pro outro. A filha do paciente, uma mulher que eu adorei conhecer, estava em prantos. Aquela mulher, forte, que quando chegamos no quarto, a vimos dando suporte a outras pessoas de um leito vizinho. Ela conversou muito conosco, nos falou sobre sua vida, seus dilemas e problemas, e que mesmo assim ela não baixava a cabeça, enfrentava o que aparecesse, estava bem-humorada, e me fez muito bem, me divertiu muito também. Como imaginar que em tão pouco tempo as coisas pudessem mudar tanto? Aquela mulher, que estava alegre em um momento, estava desconsolada no seguinte... Tinha muita gente perto dela, tentando ajudar: enfermeiras, acompanhantes de outros quartos. Eu quis chegar perto, quis consolar, mas nas minhas limitações, e não havia nada que eu pudesse fazer naquele momento. Tem horas que não existe outra coisa a fazer a não ser sentir a dor. Ficamos alguns momentos de longe, observando, tentando mostrar empatia e solidariedade, mas não senti liberdade como clown de me aproximar. Saímos, fechamos a atuação e fomos embora. Foi a primeira vez que eu vi a morte de perto na UPI e como estudante de medicina.

A atuação da semana seguinte me marcou por outros motivos. Eu ainda estava abalado dos eventos da semana anterior, mas eu confio no Bartolomeu e fui me preparar novamente. E nesta vez, éramos eu, Testa das Frituras e Pietra Fofolete. Eu não estava bem para atuar, não consegui juntar energia o suficiente pra subir o nariz, mas estávamos também com Jamaisvista de Listras e Catarina Polenta, todas juntas pra subir o nariz, e eu não quis abandonar minhas companheiras. E foi muita coisa acontecendo ao mesmo tempo, me lembrei de vários pontos da formação, entrei em conflito, a música tocando, eu sentia a energia das minhas companheiras e me sentia vazio, mas decidi subir o nariz. Puxei toda a minha confiança no Bartolomeu, e esse foi meu estopim pra subir a máscara. Durante toda a atuação eu me senti muito como no Abraço Grátis, muito self-concious, ciente de mim mesmo, saía do estado de clown com frequência, eu só queria terminar e sair dali. Mas eu não podia nem queria abandonar meus companheiros. E um fato chave do final foi ouvir do Thiago que aquela tinha sido uma das melhores atuações dele, e falou os motivos pelos quais ele tinha achado isso. Eu fiquei muito feliz por ele, e por poder compartilhar isso, mas isso me provocou muitas reflexões também. Será que eu estou tão dissociado assim do meu clown? Será que somos tão diferentes assim, pra eu ter vivido e sentido uma coisa na minha cabeça e ter transmitido outra totalmente diferente durante a atuação? O que será que isso significa e que efeitos isso tem pra mim na UPI, na minha vida acadêmica e pessoal? Por um lado, eu acho bastante natural que em uma rotina de atuações semanais, eventualmente haverão atuações que não vamos nos sentir bem, que serão ruins pra gente, que estaremos com pouca energia pra encher a jarra das companheiras e que o importante é não desistir, que temos que perseverar mesmo e não abandonar o projeto. Por outro lado, eu sinto que fazer isso foi um profundo desrespeito com o que o Bartolomeu Barbudo significa para mim. Subir o nariz com a energia baixa foi uma decisão ponderada, mas foi bastante negativa. Guardei mais uma lição pra mim na vida de clown, não sei ainda como avaliar o resultado disso tudo.




PS: neste diário, uso o gênero feminino como neutro para chamar atenção ao sexismo da língua portuguesa.

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