Querido Diário de Bordo,
A atuação de hoje não foi fácil. Não que tenha acontecido nada conosco, comentários inoportunos ou coisa do tipo. É que a atuação de hoje foi intensa demais. Estar no terceiro andar, hoje, me lembrou de todos os motivos de eu ter começado esse projeto. E de ter escolhido medicina também. A atuação de hoje foi tapa na cara atrás de tapa na cara, encontro atrás de encontro, uma emoção mais forte que a outra.
Muitas coisas aconteceram, mas vou contar as principais. Ao entrar em um dos quartos, nos deparamos com dois homens com quem já tínhamos atuado. Um deles, inclusive, eu achava que não gostava da gente, porque, apesar de brincar conosco, era sempre muito sério, falava pouco. O outro, apesar de já ter nos chateado algumas vezes, sempre mostrou gostar das nossas visitas. E eis que, entre conversas e brincadeiras, o senhor mais sério nos diz: "vocês não vieram semana passada... faz tempo que vocês não vêm aqui. Não façam isso não, viu? É importante. A gente sente falta... A gente fica sozinho".
Fiquei sem reação. A faculdade consome a gente. Entramos nesse projeto por puro amor, mas a correria e as cobranças do dia-a-dia acabam nos afastando das atuações. Faltamos por conta de prova. Contamos nos dedos quantas atuações já foram e quantas ainda faltam. Às vezes, perdemos o sentido disso tudo. E ali estava aquele homem. Sério. Sentado. Todo quebrado. Nos pedindo para não faltar, dizendo que nossa presença ali importa. Foi um choque de realidade que eu precisava. Nosso papel no hospital é a palhaçoterapia: palhaçoTERAPIA. Como é que deixamos pacientes sem terapia por culpa dos nossos problemas pessoais? Como é que pensamos em não ir mais depois de completado o número mínimo de atuações para se ganhar um certificado? Não é por isso que estamos fazendo isso. E fiquei muito grata por ter sido lembrada disso.
Em outro quarto, repleto de senhoras, brincamos e nos divertimos muito. Ouvimos histórias, reclamações, relatos de saudade... Aí eu vi uma senhorinha, que acompanhava tudo, mas não falava nada. Apenas sorria. Quando fomos pra perto dela... como ela precisava de um momento de atenção. Nos falou da idade avançada, da dor, do castigo de Deus, do esposo falecido. Era tanta dor de corpo e de alma, tanta solidão, tanta tristeza e incompreensão. E, ali, ela se abriu conosco.
Mais um vez, fiquei paralisada. Nós, desconhecidas, estávamos ali conhecendo uma pessoa de forma tão clara, tão intensa, tão íntima. Porque somos palhaços. Porque estamos aqui pra isso. Somos companhia de quem não tem companhia, somos ouvido pra quem não tem com quem falar. Somos apoio, distração. Somos até nada, se precisar.
Depois de conversar com essa senhora, segui em silêncio até o final da atuação. Conheci várias outras pessoas maravilhosas, mas não conseguia deixar pra lá o sofrimento daquela mulher tão frágil e tão forte. Queria apenas sair correndo, pegar ela no colo e dizer que, no fim, tudo ia dar certo. Que não era castigo de Deus, era só a vida. Que é difícil, porém possível, viver sem o amor da sua vida.
Descendo as escadas, eu não era mais apenas eu. Eu era uma versão de mim que sabia a história daquela senhora. Uma versão de mim que compartilhou um sofrimento tão grande. Descendo as escadas, eu tinha uma bagagem a mais. Uma bagagem que me mostrava a importância de tudo isso: estou aqui para cuidar.
Até a próxima atuação,
Bibi Oteca.
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