"O difícil é fazer o simples." Começo hoje com essa frase que martela minha cabeça desde às 5h da manhã. O diário de hoje não é diário, é um desabafo. Um desabafo doloroso de alguém que está magoada e com vergonha de certas coisas que acontecem nos serviços de saúde. Mas isso eu deixo pro fim, gosto de tudo bem explicadinho e não seria justo omitir coisas tão maravilhosas que aconteceram nessa manhã de segunda-feira.
Não dormi, a semana que está apenas começando promete tantas obrigações que saber que tem atuação, mesmo cansada, é como um oásis no sertão. O difícil é fazer o simples, sabe por quê? Porque é difícil deixar todas as provas, atividades e compromissos de lado por algumas horas, pra tentar fazer alguém sorrir numa manhã de segunda-feira. É difícil fazer o simples quando se demora 40 minutos para chegar a um lugar que se chegaria em no máximo 10 se não houvessem tantos contratempos. É difícil fazer o simples, mas é uma delícia quando uma maca largada no hospital vira uma grande história de polícia, e quando temos que nos esconder nos quartos para não sermos multadas, e que sorte a nossa, o quarto era o do delegado, estaríamos sãs e salvas.
As horas se passaram até facilmente enquanto o simples era feito. Enquanto profissionais, acompanhantes, pacientes, estudantes, funcionários, todos se moviam juntos, colaborando, inventando histórias, como numa grande roda gigante de risadas.
Vimos como o simples é bonito quando mamães nos pediam pra ficar no quarto delas por mais tempo, quando estudantes e profissionais ficavam felizes pela ajuda em passar as orientações de uma forma um pouco diferente, quando crianças davam gargalhadas só com olhares, quando as cozinheiras da copa disseram que os jogadores da Copa ainda não tinham chegado, quando um menino pequenino nos mostrou como é possível ficar feliz mesmo após tomar injeção. A manhã que teve tantos contratempos para que desse certo, deu.
Tudo aconteceu tão lindo, tão encaixado, que achei que os sinais enviados sabe lá Deus de onde que algo estava errado eram pura imaginação. A atuação acabara, eu iria embora com a imagem de muitos, muitos sorrisos espontâneos que me foram dados, iria embora muito mais completa do que fui e com a certeza de que todos os sacrifícios que fiz para estar ali valeram a pena. Daí, na hora de ir, uma médica, sim, minha revolta não me deixa omitir, uma médica pediatra, que trabalha num serviço humanizado (um dos locais mais humanizados que já conheci), sem ética, sem cuidado, sem respeito, nos aborda na frente de todos presentes: funcionários, acompanhantes E crianças, e nos inunda de desaforos, de uma forma tão grosseira, mas tão grosseira, que não houve mais energia nenhuma que sobrasse, não tinha mais palavra a ser dita, baixamos o nariz machucadas, magoadas, e dali saímos, deixando uma senhora cheia de si por ter dito o que queria e várias outras pessoas chocadas pela cena absurda que tinham visto. Ela disse que achava nosso trabalho legal, mas que queria que nós fossemos direto "divertir as criancinhas", e não "atrapalhássemos os profissionais que estavam tão agoniados trabalhando", entre outras coisas e desaforos. Soubemos que ela havia se ofendido porque tínhamos brincado com ela, e em contrapartida, nos encheu de grosserias na frente de todos e provavelmente já tinha falado com outra profissional, pois uma de minhas companheiras foi interpelada por essa, que indagou acerca de permissão, documentações, e repetia que a 'médica tinha se ofendido" num sentido que significava que essa profissional por ser médica estava num nível superior aos demais, e por isso a ofensa seria mais grave. A maioria das pessoas que vêem aqui ler nossos diários não mereciam estar lendo todo esse desabafo, mas por ser um canal de divulgação do nosso trabalho me utilizo desse para justificar o que já é justificado. A palhaçoterapia é um trabalho sério, a UPI é um trabalho sério. É um projeto atrelado a uma Universidade. As pessoas aqui são sensibilizadas e muito bem capacitadas, uma capacitação de 40h, antes de entrarem em meio hospitalar. São recicladas em aprofundamentos e congressos, e suas ações são muito bem discutidas em reuniões. A humanização não é uma utopia, é necessidade, devia ser regra e não exceção. Trabalha-se para humanizar os serviços, do paciente ao acompanhante, do recepcionista ao diretor. Lidamos com gente, e como gente queremos ser tratados, cuidamos e queremos ser cuidados, respeitamos para ser respeitados e não atrapalhamos o trabalho de ninguém para poder executar o que nos propomos a fazer.
Hoje Fiapinho foi interrompida, sua energia foi cortada, não pude dar um último olhar à criança que tanto fizemos para que nos dissesse o nome e que ficou assustada com tudo aquilo.
Hoje Fiapinho chegou em casa e chorou, chorou muito, de raiva e de tristeza (palhaço também sofre sabia? Não somos feitos de pano, assim como nos perguntaram hoje). Mas transformou essa raiva em vontade de fazer ainda mais pela humanização, transformou a tristeza em saudade de tantos momentos bons que viveu hoje e que quer viver muito mais.
Hoje agradeço pela oportunidade de participar de algo tão lindo e que luta por objetivos tão importantes, agradeço pelas minhas sensíveis e corajosas companheiras, agradeço por ver exemplos ruins mas também muitos mais que são tão bons que podemos sempre nos espelhar, agradeço pela oportunidade de receber grosseria e devolver amor. E rezo para que nenhuma criança ou velhinho, animal ou gente, doente ou são, palhaço ou não, precise passar pelo que passei hoje, precise ser atendido por profissionais tão secos e sem amor que existem por aí e que não fazem jus aos belos juramentos que fazem. Hoje agradeço por poder deitar a cabeça no travesseiro com a consciência limpa, e poder acordar, principalmente às segundas de manhã, e ver tanto sorriso e tanta gente do bem fazendo o bem. Porque um dia, todos perceberão, que difícil é fazer o simples!
Ps. Fiapinho está muito realizada por ter um nariz novo, tão lindo e tão dela!